
A Cartuxa de Laveiras, Oeiras
Nesta página:
I . História
II . Descrição
III . A Ordem da Cartuxa
IV . A espiritualidade cartusiana
V . Nossa Senhora do Vale da Misericórdia: culto e iconografia
VI . D. Simoa Godinho
I . HISTÓRIA DO MOSTEIRO DE SANTA MARIA DO VALE DA MISERICÓRDIA
A Ordem da Cartuxa foi fundada em Portugal em 1587, em Évora. Desde o início, no entanto, os monges cartusianos da cidade alentejana, pretenderam fundar uma casa perto da capital.
Em 1593, Frei D. Luís Telm (1548-1598), antigo Prior da Cartuxa de Évora, aproveitando a sua estadia em Lisboa por motivos de saúde, procurou um lugar apropriado para a nova fundação. Com a ajuda de D. Jorge de Ataíde (1535-1611), bispo de Viseu, que cedeu umas casas na Pampulha para o efeito, foi fundado em 1594 o novo Convento da Cartuxa, em local provisório.
Nesse mesmo ano (1594), falecia D. Simoa Godinho, senhora abastada, proveniente da Ilha de São Tomé, que determinou no seu testamento doar, entre outras propriedades, a quinta que possuía em Laveiras, junto a Lisboa, para uma ordem religiosa pobre, por meio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Entre as congregações religiosas interessadas em instalar-se em Laveiras, estava também a recente fundação da Ordem Cartusiana. Os terrenos foram disputados com os franciscanos arrábidos. Filipe I, que desejava também uma Cartuxa perto de Lisboa, conseguiu, do Papa Clemente VIII, o Breve que dava permissão à Misericórdia de Lisboa de ceder os terrenos aos cartuxos.
Em 12 de Dezembro de 1598, passou definitivamente a posse da quinta para a ordem dos Monges de São Bruno, fazendo-se os preparativos para erguer o eremitério, depois chamado mosteiro velho. A primeira comunidade de monges foi proveniente do mosteiro Scala Dei em Tarragona.
O convento de Santa Maria do Vale da Misericórdia começou a ser edificado lentamente. Em Dezembro de 1605, estavam construídos, além da igreja, um pequeno claustro, a cozinha e outros espaços.
Em 1612, foi eleito prior D. Basílio de Faria (1559-1625) que se dedicou a construir de raiz o mosteiro novo, dando prioridade às celas. O novo mosteiro incluía a construção de um criptopórtico abobadado, sobre o qual foi levantado boa parte do conjunto.
No primeiro período de edificação, foi erguido o claustro maior e as características celas cartusianas - com o seu jardim, sala de trabalho e local de oração -, construídas em diferentes épocas, ao ritmo das doações feitas por particulares.
Durante o priorado de D. Luís de Brito, iniciado em 1716, foi fundado um Hospício em Lisboa, na posteriormente chamada Rua do Salitre, para acolhimento dos monges em passagem pela capital.
Neste priorado, esmolas vindas do Brasil aceleraram a finalização do mosteiro. Também D. João V (1619-1750) contribuiu para a reedificação do templo. A 25 de Março de 1733 foi benzida a lápide de fundação da nova igreja, dedicada a Nossa Senhora do Vale da Misericórdia, na presença do Patriarca de Lisboa D. Tomás de Almeida.
São desta época a pintura para a capela-mor de Francisco Vieira Lusitano (1699-1783), as duas telas dos retábulos da nave, de Inácio de Oliveira Bernardes (1697-1781), bem como o notável Presépio de António Ferreira (c. 1730).
As obras da igreja e do claustro pequeno estariam terminadas antes de 1746.
Em 1755, o terramoto afectou particularmente a igreja e parte do mosteiro. Na sua reconstrução, participou provavelmente o arquitecto Carlos Mardel.
Entre 1800 e 1802, o pintor Domingos Sequeira (1768-1837), que esteve na Cartuxa de Laveiras como noviço, realizou o admirável conjunto de, pelo menos, cinco telas com temas cartusianos.
As várias vicissitudes do começo do século XIX – as invasões francesas, as lutas liberais – contribuíram para o abandono relativo do mosteiro. Em 1823, houve uma primeira tentativa de supressão do convento, no sentido de redução da Ordem de São Bruno em Portugal apenas a uma casa, tendo sido realizado o Inventário dos bens. A supressão do mosteiro não chegou a consumar-se, permanecendo os religiosos até 1833.
Com a entrada dos liberais em Lisboa, em 24 de Julho de 1833, a comunidade religiosa da Cartuxa de Laveiras decidiu exilar-se. Em Novembro, foi realizado um segundo Inventário dos bens, que foram incorporados nos próprios nacionais. A igreja foi despojada de todas as alfaias e objectos de culto e grande parte das pinturas e outros bens valiosos foram dispersos, vendidos ou perdidos. Foi dispersa também a grande Livraria dos Monges – pobres em tudo mas ricos em livros -, dificilmente reconstituível na actualidade.
Em 1835, o mosteiro e respectiva cerca foram comprados por Lourenço José dos Reis em praça pública, que por morte deste passaram para a posse de sua filha D. Joana Maria da Conceição. A propriedade degradou-se e o conjunto voltou à posse do Estado.
Na segunda metade do século XIX, a Cartuxa de Laveiras foi ocupada provisoriamente por destacamentos da Engenharia Militar do Campo Entrincheirado de Lisboa, quando da construção do Forte de D. Luís I. A igreja serviu de armazém e os espaços conventuais foram descaracterizados. Vilhena Barbosa (1862) descreveu a Cartuxa como estando em estado de ruína, a igreja profanada e as ermidas (celas) irreconhecíveis.
No início do século XX, foi determinada a transferência da Casa de Detenção e Correcção de Lisboa (Reformatório) para Laveiras, com projecto do célebre Pe. António de Oliveira (1867-1923), iniciando-se as obras de adaptação. Foram demolidas as celas da ala Oeste - sendo apenas aproveitadas as paredes exteriores - e o que restava do mosteiro primitivo. As galerias do claustro grande foram transformadas em salas de aula; o claustro pequeno foi adaptado para serviços administrativos…
Na década de 1920, foram construídas na cerca instalações oficinais e agropecuárias, o que implicou uma nova utilização do espaço e a destruição de diversas estruturas originais. A igreja abriu novamente ao culto em 1938.
Em 1976, instalou-se nos espaços da antiga cartuxa a Escola Preparatória de Caxias, com construção de pavilhões pré-fabricados no claustro grande, aí permanecendo até 2001. Neste ano, todo o complexo ficou desocupado, acentuando-se, pelo abandono e vandalismo, a descaracterização e a degradação dos edifícios restantes.
Em 2019, foi publicado o Anúncio referente à abertura do procedimento de classificação da Igreja e Mosteiro da Cartuxa de Santa Maria do Vale da Misericórdia. Em 2021, foi assinado o auto de cedência do edifício ao Município de Oeiras.
Actualmente, do mosteiro primitivo, nada subsiste. Do mosteiro novo, permanecem, embora muito alteradas: a igreja, o claustro pequeno, as galerias do claustro grande, o criptopórtico…
O notável conjunto de peças de grande valor artístico, histórico e patrimonial, nomeadamente o presépio, as numerosas obras de pintura e escultura, o valioso da livraria cartuxa e muitos outros valores, está disperso por Museus e outras instituições, encontrando-se uma grande parte ainda por identificar e localizar.
Também na toponímia se encontram marcas da Cartuxa de Santa Maria do Vale da Misericórdia: em Lisboa, na Travessa dos Brunos, na Pampulha, memória da primeira casa que os monges tiveram em Lisboa; na Rua dos Cartuxos - depois chamada do Salitre -, onde se encontrava o Hospício do Monte Olivete dos monges Brunos; em Caxias, onde existe a Estrada e o Largo da Cartuxa, a Rua de São Bruno, o Forte de São Bruno e, de modo singular, a Rua Dona Simoa Godinho, em memória da generosa dama são-tomense.
II . DESCRIÇÃO
O antigo mosteiro de Nossa Senhora de Vale de Misericórdia está situado junto à Ribeira de Barcarena, tendo no seu entorno a antiga Casa Real de Caxias e, junto à praia o Forte de São Bruno.
O Largo da Cartuxa orienta-nos para o portão principal, aberto em (c.) 1746 no muro que delimita o adro. É o portão primitivo, construído a eixo da igreja, encimado por duas letras
CL – Cartuxa de Lisboa - e emoldurado por arco rebaixado. Tem no frontão a antiga cartela onde ainda se conseguem visualizar as sete estrelas cartusianas do seu brasão. Dá acesso a uma passagem abobadada que antecede o adro.
O grande adro está limitado por construções modernas que, por sua vez, substituíram as antigas hospedarias destinadas a eventuais visitantes da Cartuxa.
A igreja destaca-se pela ampla fachada, construída na primeira metade do século XVIII, em calcário, com alçado voltado a Sul. Preside a admirável imagem de Nossa Senhora do Vale da Misericórdia.
Do lado esquerdo, encontra-se a antiga Sala do Capítulo - posteriormente adaptada a Gabinete da Direcção do Centro Educativo -,que dá acesso ao pequeno claustro.
A igreja, destinada a servir uma comunidade relativamente reduzida, tem nave única dividida por espaços, segundo o uso cartusiano: a área de acesso junto à entrada, o espaço do antigo coro dos irmãos leigos, a zona do antigo coro dos padres e, finalmente a capela-mor. Anteriormente, haveria divisórias entre cada espaço: dois retábulos laterais separando os dois coros e uma vidraça antecedendo a capela-mor.
Actualmente, mantêm-se os bancos de pedra à entrada e uma balaustrada de madeira. Os anteriores retábulos dedicados a Santa Bárbara e São Sebastião, divisórios dos dois coros, desapareceram.
Nas paredes laterais da nave, as portas da esquerda dão acesso ao claustro menor – as da direita são falsas. Encontram-se também, embutidos nas paredes, dois armários de apoio às celebrações litúrgicas.
Na capela-mor, sobre-elevada em relação à nave, destaca-se o monumental retábulo-mor, provavelmente o primitivo. Tem camarim com trono, anteriormente com a grande tela de Nossa Senhora e os monges fundadores de Vieira Lusitano. Ao centro, encontra-se a imagem de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da antiga Casa de Correcção, ladeada pelas imagens de São Bruno e de São José – esculturas em pasta de madeira encomendadas pelo Padre António de Oliveira.
No frontão encontra-se o escudo cartusiano, com as sete estrelas simbólicas dos irmãos fundadores.
O coro-alto, destinado aos visitantes e familiares, tem acesso por meio de uma das portas laterais da igreja e uma escadaria em pedra que conserva ainda as paredes laterais revestidas de azulejos, que conferem grande luminosidade.
A sacristia, à esquerda da capela-mor, é um espaço quadrangular, abobadado. Tendo sido adaptada a cozinha do reformatório no início do século XX, está actualmente bastante despojada. Mantém as três portas que dão acesso ao claustro menor, o lavabo, e uma lápide epigrafada:
ESTA CELA MANDOU FAZER ÁLVARO DA FONSECA LOBO DESEMBARGADOR QUE FOI DA CASA DA SUPLICAÇÃO A QUAL ORDENOU EM SEU TESTAMENTO QUANDO SE FEZ MONGE NESTA CARTUXA SE EDIFICASSE EM HONRA DE NOSSA SENHORA DA NAZARÉ. E A DOTOU COM 100.000 REIS DE RENDA PERPÉTUA PARA SUSTENÇÃO DO MONGE QUE NELA VIVER. AO QUAL ENCARREGA E PEDE MUITO ENCARECIDAMENTE QUE TODOS OS DIAS NA ORAÇÃO E NA MISSA TENHA PARTICULAR CUIDADO DE ENCOMENDAR A DEUS A SUA ALMA E DE SEUS PAIS. E TEM OBRIGAÇÃO ESTE CONVENTO DE MANDAR DIZER TODOS OS ANOS 30 MISSAS CONFORME SUA TENÇÃO. ANO DE 1732.
Do antigo mosteiro pouco subsiste. Exteriormente são visíveis, do lado ocidental, os sólidos contrafortes que permitiram superar o desnível primitivo do terreno.
O Claustro Menor – claustrinho ou claustro das capelinhas – edificado ao longo do século XVIII, conserva ainda a galeria em arcos de volta perfeita, e a fonte central de base octogonal. Nas paredes encontram-se dois baixos-relevos, representando a Fé e a Pátria, assinados Meyrelles 1907, do período do reformatório; uma lápide comemorativa da estadia do pintor Domingos Sequeira no convento, uma tampa de sepultura epigrafada: SEPULTURA DE BERNARDO MACHADO CAVALEIRO FIDALGO DA CASA D'EL REI NOSSO SENHOR E DE JERÓNIMA CORDEIRA SUA MULHER E DE SEUS HERDEIROS ANO 16 [...]; e uma lápide também epigrafada:
ANO MDCXCVIII O EXCELENTÍSSIMO E REVERENDÍSSIMO SENHOR LUÍS DE SOUSA PRESBÍTERO CARDEAL DA METROPOLITANO ARCEBISPO DE LISBOA DO CONSELHO DE ESTADO D'EL REI DOM PEDRO II NOSSO SENHOR E SEU CAPELÃO MOR MANDOU EDIFICAR ESTA CELA E A DOTOU COM 50 PERPÉTUO PARA SE ALIMENTAR O MONGE QUE HÁ-DE ORAR PELO DITO SENHOR CARDEAL E PELO AUMENTO DA EXCELENTISSIMA CASA DOS SENHORES MARQUESES DE ARRONCHES [E] CONDES DE MIRANDA. E SÃO OBRIGADOS OS MONGES DESTE CONVENTO A UMA MISSA QUOTIDIANA PERPETUAMENTE POR TENÇÃO DE E POR SUA ALMA DEPOIS DE SEU FALECIMENTO NA FORMA DA ESCRITURA QUE SE FEZ EM LISBOA NAS NOTAS DO TABELIÃO MIGUEL TAVARES DE MORAIS AOS 20 DE MARÇO DE 1698.
Na antiga Sala do Capítulo, depois adaptada a Gabinete de Direcção do Centro Educativo, encontrava-se um conjunto de retratos de personalidades veneráveis da ordem cartusiana, que foram depositados na Torre do Tombo e actualmente se encontram dispersos por várias instituições.
Também na antiga Sala do Colóquio, se encontravam um conjunto de célebres telas de Domingos Sequeira.
Do claustro grande, o espaço mais emblemático da espiritualidade cartusiana, já pouco se mantém. Foi edificado ao longo do século XVII, também ao ritmo permitido pelas várias doações, sendo anteriormente constituído por 12 celas distribuídas por três galerias. Foram demolidas no início do século XX para a instalação de camaratas, salas de aula e outros serviços adscritos ao reformatório. Conserva as galerias com arcos de volta perfeita.
Mantém-se ainda o antigo criptopórtico, construído no início do século XVII à mesma cota do mosteiro primitivo.
Na antiga cerca, ainda subsistem os antigos os encanamentos de água, para abastecimento do convento. É possível ver também um azulejo com a representação de São Bruno, junto a uma das fontes.
III . A ORDEM DA CARTUXA
A Ordem dos Cartuxos - Ordo Cartusiensis - é uma das mais antigas do mundo. Foi fundada por São Bruno (c. 1030-1101) em 1084, que estabeleceu um eremitério na Chartreuse, na região dos Alpes, com mais seis monges, em terreno cedido por São Hugo, Bispo de Grenoble.
Em 1090, foi edificado um segundo mosteiro, na Calábria, no Sul de Itália. A partir de 1115, foram fundadas várias cartuxas, nomeadamente na região dos Alpes. Em 1128, foram redigidas as Consuetines Cartusiae (Costumes cartusianos), adoptadas em todas as comunidades, fundamento da legislação cartusiana no decurso dos tempos.
Em 1132, o mosteiro primitivo da Chartreuse de Grenoble foi destruído por uma grande avalanche. A comunidade foi transferida para um local próximo, sendo chamada a Grande Chartreuse, que se tornou a sede da Ordem Cartusiana em toda a Europa.
Em 1145, foi fundada a primeira Cartuxa para mulheres, iniciando o ramo feminino cartusiano.
A Ordem expandiu-se ao longo do século XII, em França, Itália e posteriormente na Alemanha, Holanda, Dinamarca, Espanha, Inglaterra… Em 1371, contava com 130 casas em toda a Europa. No final da Idade Média, a fundação de casas continuou a um ritmo constante, chegando até à Suécia e à Hungria, tendo, no início do século XVI, cerca de duzentas casas em actividade.
Com a agitação provocada pelo tumulto das guerras de religião e do movimento protestante no século XVI, cerca de 40 cartuxas desapareceram ou foram parcialmente incendiadas. Muitos religiosos foram mortos, entre eles os primeiros mártires da reforma inglesa. A Grande Chartreuse foi saqueada e queimada pelas tropas calvinistas, perdendo-se grande parte da sua preciosa Livraria.
Com os tratados de paz, seguiu-se um período de estabilidade relativa, coincidindo com a fundação da primeira cartuxa portuguesa em Évora.
No final do século XVIII, a tormenta revolucionária varreu novamente a Europa ocidental. Dezenas de mosteiros foram extintos e as congregações religiosas suprimidas. Muitos cartuxos, tal como outros religiosos, foram dispersos, deportados ou mortos.
Em meados do século XIX, foi retomada a vida cartusiana, existindo no final do século 27 casas na Europa.
No princípio do século XX, assistiu-se a uma nova ascensão do anti-clericalismo, que se expandiu igualmente por toda a Europa, tendo sido encerrados grande número de conventos. Conseguiu-se a lenta reinstalação de algumas casas no período que precedeu a Segunda Guerra Mundial. Após esta, vários mosteiros foram reabertos ou construídos, e a Ordem começou a expandir-se fora da Europa: Estados Unidos, Brasil, Argentina, Coreia do Sul.
Actualmente, a ordem cartusiana conta com 21 casas activas, manifestação de uma presença que continua viva no meio das vicissitudes da vida contemporânea, legado de uma herança que permaneceu intacta por mais de nove séculos.
Quando a ordem Cartuxa chegou a Portugal no século XVI, tinham sido fundados cerca de 250 mosteiros ao longo de cinco séculos. No entanto, a espiritualidade cartusiana foi conhecida desde períodos muito anteriores à fundação do primeiro mosteiro.
Em 1368, foram traduzidos para português e conservados na livraria alcobacense, os Sete Tratados Cartusianos, obra do monge cartuxo francês Frei Roberto. Em1445, a notável Vita Christi de Frei Ludolfo da Saxónia foi traduzida por Frei Bernardo de Alcobaça, tendo sido impressa em Lisboa por mandato da Rainha D. Leonor (1458-1525). Durante o reinado de D. João III (1521-1557), chegaram a Portugal notícias de cartuxos dos mosteiros ingleses que fugiam para França, Itália e Espanha.
Em 1535, o embaixador de Portugal em Roma, D. Martinho de Portugal, escrevia a D. João III, recomendando a introdução da Cartuxa no Reino. No entanto, a entrada da Ordem no território português foi promovida por D. Teotónio de Bragança (1530-1602), que, em 1583, numa carta ao Papa Gregório XIII, explicita o seu íntimo desejo de ser o primeiro a introduzir neste Reino esta santíssima Ordem e começar a construir-lhe um mosteiro (1).
A 8 de Novembro de 1587, foi fundado o mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, na cidade de Évora, e, em 1594, o mosteiro de Santa Maria Vallis Misericordiae em Laveiras, perto de Lisboa.
Nos séculos XVII e XVIII, o número de cartuxos portugueses aumentou continuamente. A agitação política e social do início do século XIX atingiu também os conventos portugueses, que receberam os monges fugidos de Espanha com as invasões francesas.
Com o decreto de extinção das ordens religiosas de 1834 e as perturbações que se seguiram, os cartuxos foram obrigados a sair de ambos os conventos.
Na segunda metade do século XX, a Ordem cartusiana regressou a Portugal, tendo sido restaurada a Cartuxa de Évora, em 1960. Foi no entanto encerrada em 2019, por dificuldades várias na sua sobrevivência.
A Ordem da Cartuxa teve uma presença silenciosa em Portugal, com a fisionomia própria da sua espiritualidade. Existiram notáveis escritores cartuxos portugueses, nomeadamente Frei João de São Tomás, autor do manuscrito Origines Cartusiarum Lusitaniae Eborensis (1733-1737), e D. Basílio de Faria (1559-1625), autor de numerosos tratados, entre eles a Vida do Patriarca São Bruno.
A preservação do legado cartusiano em Portugal, ainda em grande parte desconhecido, revela-se particularmente importante para a valorização do património e da história lusitana.
IV . A ESPIRITUALIDADE CARTUSIANA
O núcleo da espiritualidade cartusiana radica na contemplação. Tem por base as Consuetines Cartusiae, redigidas em 1128, com as sucessivas e necessárias rectificações ao longo dos séculos.
A vocação à solidão e ao silêncio está intrinsecamente associada à espiritualidade cartusiana, o que implica uma separação efectiva com o mundo através da clausura. O monge cartuxo não recebe visitas nem faz apostolado no exterior, apenas saindo do mosteiro para o passeio semanal.
A vocação cartusiana inclui padres e irmãos, com vocações complementares. Os monges que vivem no claustro são todos sacerdotes ou destinados a ser. Os monges irmãos – também chamados irmãos leigos ou conversos – têm como tarefa apoiar a comunidade, trabalhando uma boa parte do dia no exterior, nos vários serviços.
A fisionomia própria da Ordem Cartuxa tem a sua expressão também na arquitectura do mosteiro. Cada cela corresponde de facto a uma pequena habitação, com um oratório, espaços dedicados ao estudo e ao descanso, tendo em anexo um pequeno jardim. Está preparada para assegurar ao cartuxo uma solidão tão completa quanto possível, e é onde o monge passa a maior parte da sua vida.
Os monges reúnem-se nas celebrações litúrgicas na igreja, no capítulo, no refeitório, e na longa caminhada semanal.
Cada mosteiro cartusiano inclui: o grande claustro onde se encontram as celas individuais; o pequeno claustro com os espaços de vida em comum, nomeadamente a igreja, o capítulo e o refeitório, e alguns espaços ou locais de trabalho a eles associados; e as oficinas dos irmãos leigos. Alguns mosteiros acrescentam um segundo claustro pequeno para instalação dos irmãos leigos. É de ressaltar a importância da livraria nos mosteiros cartuxos, tendo em conta que o monge professo dedica longas horas à leitura e ao estudo.
A igreja cartusiana tem também algumas características específicas. A nave está dividida em três espaços - o átrio de entrada, o coro dos irmãos leigos e o coro dos monges professos - separados por altares ou balaustradas. Não se destina ao culto público, o coro-alto é reservado apenas aos visitantes autorizados, particularmente os familiares dos monges.
O hábito do monge cartuxo consiste numa longa veste branca, que cobre todo o corpo, o escapulário também branco, um capuz sobre a cabeça, um rosário.
A Ordem cartusiana radica num grande amor à Cruz de Cristo, com um regime exigente de penitência. Venera de modo particular a Virgem Maria, São João Baptista – associado à data da fundação do primeiro convento - e os santos cartuxos, nomeadamente São Bruno.
O emblema cartusiano é constituído por uma cruz sobre o mundo, rodeada de sete estrelas, numa referência a São Bruno e os seis primeiros fundadores.
V . SANTA MARIA DO VALE DA MISERICÓRDIA
Nossa Senhora do Vale da Misericórdia é uma invocação singular no panorama do culto mariano em Portugal. Foi assim chamada em memória da doação das terras em Laveiras pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em conformidade com o testamento de D. Simoa Godinho. A quinta doada ficava situada no vale da ribeira da Barcarena, uma das linhas de água afluentes da margem direita do rio Tejo. A denominação une os dois termos, resultando nesta particular invocação.
Nossa Senhora do Vale da Misericórdia está representada no cimo da fachada principal da igreja. A Virgem tem o Menino Jesus sobre o braço esquerdo, que abençoa. Ambas as imagens estão coroadas. O manto da Virgem envolve também o Menino que segura uma das pontas.
A mesma iconografia está representada no antigo painel na capela-mor, da autoria de Vieira Lusitano.
A igreja possuía uma escultura de Nossa Senhora da Misericórdia que, possivelmente, segundo Luís Pereira Gonzaga nos Monumentos Sacros de Lisboa, teria sido transferida para a freguesia de Oeiras.
VI . D. SIMOA GODINHO
D. Simoa Godinho nasceu na ilha de São Tomé por volta de 1537. Era filha de um comerciante de origem europeia e mãe de origem africana. De família abastada, casou com Luís de Almeida, fidalgo português, também ele integrado na actividade açucareira.
O casal veio para Lisboa entre 1570 e 1578, provavelmente devido à instabilidade social que agitava a ilha nesse período. Fixou residência numa casa apalaçada às Portas do Mar, nas proximidades da antiga igreja da Misericórdia de Lisboa, onde mandou edificar uma grandiosa capela – actual capela-mor da igreja da Conceição Velha.
D. Simoa, viúva e sem filhos, doou a sua grande fortuna a várias instituições, nomeadamente a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. No seu testamento dispôs que uma das suas propriedades, a quinta de Laveiras fosse destinada a um Mosteiro de Religiosas pobres, como desejo e confio fazer, ainda que quem me este meu testamento faz me põe dificuldade de estarem aí mulheres, eu desejo que se celebre aí o Ofício Divino, pelo que peço ao Senhor provedor e a meus testamenteiros façam na mesma Quinta Mosteiro de Religiosas pobres, e quando não puderem serem freiras, sejam frades, de maneira que nela se sirva a Nosso Senhor Deus por pessoas eclesiásticas e religiosas.(2)
A Quinta de Laveiras, por impossibilidade de ser entregue a religiosas, foi doada aos padres brunos, para a edificação do seu convento.
D. Simoa, a nobre dama são-tomense, permaneceu na memória lisboeta através da sua capela. Também na toponímia, é relembrada na Rua Dona Simoa Godinho em Laveiras, concelho de Oeiras, junto ao convento da Cartuxa, que a sua generosidade proporcionou.
- BILOU, Francisco, A fundação da Cartuxa de Évora e os priorados de Dom Luís Telmo e Dom João Bellot (1587-1593).
- AMBRÓSIO, P. António, Dona Simoa de S. Tomé em Lisboa, o seu testamento e a sua capela, Lisboa, Revista Municipal, 1988, pp. 33-38.
Nota: Estando a decorrer estudos de investigação sobre a Cartuxa de Laveiras, o texto actual poderá ainda ter alguma revisão. Esperamos que o previsto lançamento de publicação sobre este importante monumento, da responsabilidade do Município de Oeiras, durante o ano de 2025, possa complementar esta informação.
REFERÊNCIAS
- AZEVEDO, Carlos, Dicionário da História Religiosa de Portugal (dir.), Lisboa, Círculo de Leitores, imp., 2000.
- GOMES, Jesué Pinharanda, MAYO ESCUDERO, Juan, A Cartuxa de Lisboa: Legado de Contemplação, Salzburgo, Universitat Salzburgo, Institut für Anglistik und Amerikanistik Universitat Salzburg, 2007, (Analecta Cartusiana; 246).
- TERESO, Maria Gomes, Mosteiro de Santa Maria Vallis Misericordiae, A definição da morfologia arquitectónica cartusiana desaparecida, Évora, Universidade de Évora, 2016. Tese de Mestrado.
- OEIRAS. Câmara Municipal, CARRILHO, Pedro, et al. Santa Maria Vallis Misericordiae, A Cartuxa em Oeiras, Oeiras, Câmara Municipal, 2023.
- LOUREIRO, José João, Amores Dispersos. Notas sobre Arte…. Versão em linha, Edição do Autor, 2024. Fascículo 1. https://independent.academia.edu/JoseLoureiro/Dispersos
FOTOGRAFIA
- Francisco Gomes
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