O órgão congénere da Sé de Faro (Mariana, Brasil)


A Sé de Mariana, no Estado de Minas Gerais no Brasil, possui um magnífico órgão, congénere do órgão da Sé de Faro, único instrumento existente no hemisfério Sul construído segundo modelo da oficina de Arp Schnitger.

Originalmente construído para uma igreja de Lisboa, a localização inicial exacta permanece incerta. Em 1722, o Convento de São Francisco da Cidade, encomendou ao organeiro estabelecido em Lisboa, João Henriques Hulemcampo - Johann Heinrich Hulenkampf  – discípulo do famoso construtor de órgãos alemão Arp Schnitger, um órgão que, provavelmente, corresponde ao órgão de Mariana.

Com a criação em 1745 da Diocese de Mariana, em Minas Gerais (Brasil), a matriz foi elevada a catedral e dedicada a Nossa Senhora da Assunção.

Dom Frei Manoel da Cruz (1690-1764), 1º Bispo diocesano de Mariana, solicitou e obteve do rei português a concessão de meios financeiros para o equipamento da sua nova Catedral, e também para a aquisição de um órgão de tubos. Em 1747, o Conselho Ultramarino deu parecer favorável no sentido de se prover de um órgão a futura Sé, por pedido expresso de D. João V (1689-1750) e concretizado por D. José I (1714-1777).

A 22 de Junho de 1752, procedeu-se à compra de um instrumento já construído - provavelmente o citado órgão do Convento de São Francisco da Cidade em Lisboa. Para esse efeito, recorreu-se aos serviços do mestre organeiro lisboeta João da Cunha (1712-1762):

Recebi do m.to Rd.o Snor.’ Beneficiado Joze de Oliveyra hum conto e duzentos mil reis cuja coantia importou o Orgaõ q.’ lhe vendi p.ª a See da cid.e de Marianna o qual foy na frota deste prez.te anno e de como estou pago e satisfeito lhe pasey o prez.te por mim feyto e assignado em Lx.ª hoje 26 de Junho de 1752 a.’Joaõ da Cunha (1)

O órgão chegou ao Rio de Janeiro no dia 16 de Outubro de 1752. Vinha desmontado e empacotado em 18 caixas e 10 embrulhos de diferentes dimensões: “Hum Orgaõ grande com Sua caxa e maes Ornatos, e talhas pertencentes a elle que foy em 18 cachoens numerados com as advertencias precizas para se armar, e taõ bem em des embrulhos grd.es e pequenos numerados” (1).

Foi transportado por João Leite Ribeiro, do Rio de Janeiro à cidade de Mariana, juntamente com 26 caixões contendo os ornamentos destinados à Sé marianense.

Os trabalhos de assentamento do órgão na catedral de Mariana estiveram a cargo do Mestre de Obras Manuel Francisco Lisboa (c. 1700 -1767), que também construiu a respectiva tribuna, e provavelmente acompanhados pelo Padre Manuel da Costa Dantas, primeiro organista da catedral e mestre de capela.

A 17 de Setembro de 1753 o órgão já estaria montado e afinado, pronto a ser utilizado, segundo registo do pagamento ao cónego Vicente Gonçalves Jorge de Almeida, Secretário e Escrivão da Câmara Eclesiástica.

Nos períodos que se seguiram, o órgão teve várias reparações, duas delas na primeira metade do século XIX, pelo organeiro Athanazio Fernandes da Silva, respeitado fazedor de órgãos de Minas Gerais, seguindo-se um período de quase abandono e negligência do instrumento. Na década de 1930, o órgão encontrava-se sem qualquer uso.

Em 1977-1984, foi restaurado na oficina hamburguesa de Rudoll von Beckerath (1907-1976). Durante esta intervenção, foi descoberta a assinatura de Hulenkampf sob a pintura da consola e a data 1723, confirmando a autoria do mestre organeiro João Henriques.

Entre 1997 e 2002, teve um novo restauro confiado ao organeiro Bernhardt Hilbrand Edskes (1940-2022), na própria catedral de Mariana, restabelecendo o plano sonoro e instrumental original.

O Grande Órgão da Sé de Faro data provavelmente de 1716, segundo data gravada na caixa do órgão, e portanto ligeiramente anterior ao de Mariana. Está actualmente atribuído também ao Mestre João Henriques, por vários indícios, nomeadamente nota encontrada no interior da caixa, escrita pelo cónego António Fernandes da Cruz David:

Este órgão foi encomendado pelo Revmº cabido desta catedral no anno de 1715 ao organeiro João Henriques, residente em Lisboa o qual veio coloca-lo em 1716. No ano de 1767 foi aumentado com jogos novos e (novos) registos entre os quais foi (pos-)to o d’echo e contra echo pelo organeiro Pascoal. Foi limpo e afinado nos anos de 1722, 1775, 1814 e último mez de Agosto de 1874 pelo organeiro espanhol D. Francisco Alcaide. No compartimento inferior deixo (???)….C. David

Teve uma história acidentada, com restauro devido ao sismo de 1722, a introdução de registos em 1743-1745, e foi afectado pelo terramoto de 1755, que obrigou a novas intervenções. Em 1767, foi remodelado pelo organeiro italiano Pascoal Caetano Oldovini (c. 1720 - 1785), que alterou substancialmente o instrumento.

O restauro do órgão em 1972-1974 pela empresa holandesa Flentrop repôs a presumível composição original. Finalmente foi feita a revisão completa em 2007 pelo Mestre organeiro Dinarte Machado (n. 1959).

Há um inequívoco parentesco entre os órgãos da Sé de Faro e da Sé de Mariana - na estrutura de influência alemã, na decoração barroca -, além da proximidade na datação.

Foram ambos atribuídos durante muito tempo a Arp Schnider (1648-1719), o famoso organeiro alemão, mas actualmente a autoria está consensualmente concedida a João Henriques Hulenkampf, que possivelmente os construiu na sua oficina de Lisboa, segundo modelo da oficina hamburguesa.

Ambos os instrumentos têm a fachada dividida horizontalmente, com canaria disposta em três torres, e uma notável decoração em chinoiserie sobre fundo rubro – pintura por Francisco Correia da Silva (1751), no caso de Faro -, com talha e estatuária barroca. Estão rodeados por anjos, lateralmente e no cimo – anjos músicos no caso de Faro. O órgão da catedral de Mariana tem superiormente o emblema franciscano – forte indício da sua provável origem.

Estruturalmente, o órgão de Mariana está possivelmente mais próximo do original, pois o instrumento de Faro teve bastantes intervenções antes e depois do terramoto.

Os dois órgãos são indubitavelmente peças únicas de exaltação da arte organística, concretizada nomeadamente na esplêndida e admirável decoração barroca.

 

  1. BRÉSCIA, Marco, O órgão Schnitger da Sé de Mariana, para além do objecto organológico (2015)

 

REFERÊNCIAS

  • TRINDADE, Raimundo, Instituições de igrejas no Bispado de Mariana, SPHAN, Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional, Publicação nº 13, Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1945.
  • MESQUITA, José Carlos Vilhena, “O Órgão da Sé de Faro – do pouco que se sabe ao muito que se presume”, in A Música Uma Tradição Algarvia, edição da Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da Cultura, Faro,1989, pp. 103-110.
  • DODERER, Gerhard, “Relações musicais luso-brasileiras do século XVIII: dois casos particulares”, in A Música no Brasil Colonial, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 389-416.
  • D’ ALVARENGA, João Pedro, O órgão da Sé catedral de Faro, Universidade de Évora, 2007 https://www.snpcultura.org/arquivo_vemos_ouvimos_e_lemos_cd_orgao_se_faro.html (consultado em 09.07.2024).

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