O Martírio da Rainha Ketevan, Geórgia


A importância histórica do painel de azulejos da Mártir Santa Ketevan preservado no Convento da Graça motivou a intervenção das autoridades georgianas no sentido de um melhor conhecimento e aprofundamento da história dos missionários agostinhos portugueses na Geórgia. No início do século XXI, iniciaram uma série de acções com vista ao seu estudo e divulgação.

Este painel faz parte de um grande conjunto azulejar que reveste a antiga Sala do Capítulo do Convento da Graça, dedicado aos mártires e missionários notáveis nas missões agostinhas de além-mar.

Em sequência do decreto de extinção dos conventos religiosos em Portugal, em 1834, o convento foi abandonado. A antiga Sala do Capítulo foi entregue ao Exército, assistindo-se à rápida deterioração do conjunto azulejar, incluindo o representativo da Rainha Ketevan.

Em 2015, o painel de azulejos, que se encontrava em mau estado, foi restaurado com o apoio da National Agency for Cultural Heritage Preservation of Georgia.

Também nesse ano (2015), foi realizada uma réplica fiel do mesmo painel, por iniciativa do Embaixador da Geórgia em Portugal, Giorgi Gorgiladze e dos fundadores do Palácio Histórico Chateau Mukhrani, onde foi exposta solenemente em 2017.

 

A Valorosa Ketevan, Rainha da Geórgia

A rainha Ketevan nasceu cerca de 1560, sendo filha do Príncipe Ashotan de Mukhrani da dinastia Bagrationi-Mukhrani. Casou-se, em (c.) 1581, com David de Kakhetia – futuro David I de Khaketia. Após a morte do marido em 1602, lutou pelo reconhecimento de seu filho Teimuraz como rei de Kakhetia, particularmente junto do poderoso Xá Abbas I da Pérsia (1571-1629).

Durante as lutas incessantes contra as tentativas de domínio persa na região, foi enviada a Abbas I como mediadora, em 1614, por seu filho, Teimuraz. Ficou retida como prisioneira em Xiraz durante vários anos.

Em 1623, entrou em contacto com os missionários agostinhos portugueses, que nesse ano, tinham fundado um convento em Xiraz.

Instada por Abbas I a tornar-se moura e a renunciar à fé cristã, recusou, sendo martirizada em 22 de Setembro de 1624.

O martírio de Ketevan foi particularmente cruel. Segundo os testemunhos dos missionários agostinhos, foi queimada em brasas vivas com tenazes: Logo as tenazes lhe tiraram de uma e outra face pedaços de carne, (…) e despindo-a da cinta para cima, a atanazaram nos peitos (…) (1)

A descrição do seu padecimento foi narrada na memorável Relação verdadeira do glorioso martírio da Rainha Ketevan da Geórgia, por Frei Ambrósio dos Anjos (c. 1590-1642), escrita em 1624, memorando que serviu de base para grande parte dos relatos históricos sobre o martírio.

Os seus restos mortais ficaram enterrados por vários meses. Foram descobertos por Frei Ambrósio dos Anjos no início de Janeiro de 1625, estando o corpo enterrado três meses e treze dias e em cova muito funda (1).

 

O percurso atribulado das relíquias da Rainha Ketevan

Frei Ambrósio dos Anjos, pela insegurança do local onde a rainha foi martirizada, transferiu primeiramente o corpo para o convento agostiniano de Ispaão, sede da Ordem.

Em 1627, P. Frei Manoel da Madre de Deus (m. 1628), Prior do Convento de Ispaão, na sua ida para Goa, levou consigo a mão direita da Rainha Santa em carne e osso do braço para consolação dos monges e mendigos do mosteiro de Goa (1). Foi depositada no convento agostinho de Nossa Senhora da Graça em Goa, em sepultura particular, juntamente com as dos Veneráveis Frei Jerónimo da Cruz e Frei Guilherme de Santo Agostinho.

Em 1628, dois missionários agostinhos, entre eles Frei Ambrósio dos Anjos, saíram de Goa com a intenção de fundar uma missão nas terras do Gorgistão. Levaram consigo algumas das relíquias da memorável Rainha, no sentido de facilitar essa fundação. Sabe-se que a preparação desta viagem incluiu, além das relíquias, Dos Paineis do martyrio da Raynha, obra provavelmente do pintor goês Aleixo Godinho.

Parte das relíquias foram entregues pelos missionários ao Rei Teimuraz (1589-1663), quando os religiosos chegaram em 11 de Maio de 1628. Foram solenemente depositadas na Catedral de Alaverdi e aí guardadas até 1723, quando se perderam durante os ataques otomanos.

Da Geórgia, em 1631, chegou também a Roma uma relíquia trazida pelo Pe. António de São Vicente, sendo entregue ao ilustre peregrino Pietro della Valle (1586-1652), personagem que tinha conhecido a Rainha Ketevan durante as suas viagens pelo Oriente. Esta relíquia, actualmente, ainda não foi encontrada.

Segundo um relato de um autor do século XIX, a Namiuri, na Bélgica, chegou igualmente uma relíquia em 1845, procuradas em vão no século XX (1973) pela investigadora georgiana Nino Salia.

Quanto às relíquias depositadas no Convento da Graça em Goa, são aparentemente as únicas conhecidas actualmente. No decénio de 1720, os cronistas da Ordem revelaram que as ossadas da Rainha permaneciam no convento de Goa.

Segundo Frei António da Purificação, na segunda janela da capela da Casa do Capítulo da igreja de Nossa Senhora da Graça, está um túmulo de pedra onde se encontram depositados os ossos da valerosa Guativanda rainha de Gurgistão e os Ossos dos servos de Deos o Pe. Fr. Guilherme de S. Agostinho eremita e da Rainha Guativanda, os quaes derão ma vida pela fé de N. S. Jesus cristo; e os do Pe. Fr. Hyeronimo da Cruz filho da Província de Portugal (1).

Quando o convento foi abandonado em 1835, a urna de Ketevan ainda estava no local, de acordo com o inventário do recheio realizado pelas autoridades portuguesas após o seu encerramento.

O estudo publicado por Robert Gulbenkian em 1985, sobre o painel azulejar existente no Convento da Graça em Lisboa, promoveu eventualmente também a procura na Índia dos restos mortais desta notável rainha.

No final da década, iniciaram-se contactos entre as Repúblicas da Geórgia e da Índia no sentido de as descobrir. Várias delegações da Geórgia trabalharam em conjunto com o Archaeological Survey of India para tentar localizar o túmulo de Ketevan nas ruinas do convento agostinho de Nossa Senhora da Graça na Velha Goa.

O convento encontrava-se em ruínas. Os primeiros trabalhos de investigação foram infrutíferos, em grande parte pela deficiente interpretação das fontes portuguesas sobre o local de sepultamento.

Apenas em 2004 se identificou correctamente o local primitivo da sepultura, por meio de sondagens levadas a cabo pelo Archaeological Survey of India. Do grupo de trabalho fez parte também o investigador português Sidh Losa Mendiratta. E, em 2006, como resultado das escavações arqueológicas, foram descobertos os vestígios pelo arqueólogo indiano Nezamuddin Tahir. Em 2013, após a análise laboratorial, os estudos efectuados sobre os fragmentos de ossos encontrados, permitiram concluir que se tratava com alta probabilidade das ditas relíquias da venerável Rainha Ketevan da Geórgia.

Em 2017, as relíquias foram enviadas provisoriamente de Goa para a Geórgia, sendo recebidas solenemente no dia 23 de Setembro.

Perante o pedido insistente das autoridades georgianas, finalmente no dia 9 de Julho de 2021, uma parte das relíquias foi cedida definitivamente ao governo georgiano e recebidas pelo Patriarca Elias II, Primaz da Igreja Ortodoxa da Geórgia.

 

A Rainha Ketevan no painel de azulejos do convento da Graça

O azulejo panorâmico com a representação do martírio da rainha Ketevan, existente na antiga Sala do Capítulo do Convento de Nossa Senhora da Graça em Lisboa, foi realizado no início do século XVIII, tal como os restantes painéis do conjunto azulejar na mesma sala.

Em 1834, quando da extinção das ordens religiosas, a Casa do Capítulo foi entregue à Irmandade do Senhor dos Passos, mas, nos finais do século XIX ficou na posse do Quartel da Graça, permanecendo afecto ao Exército ainda em 1973.

Em 2008, as autoridades georgianas tomaram conhecimento da existência de uma representação do Martírio da Rainha Ketevan num desses painéis azulejares, com a indicação de estarem em mau estado. Contribuíram então para a restauração do painel, que se iniciou em 2015.

Em 2017, o presidente da Geórgia, Giorgi Margvelashvili, visitou o mural da Rainha Ketevan no Convento da Graça, durante sua viagem oficial a Portugal. Os trabalhos de restauração continuaram e um acordo foi assinado com a Agência Nacional de Preservação do Património Cultural do Ministério da Cultura da Geórgia.

No mesmo ano (2017), especialistas portugueses envolvidos no projecto de restauração do painel de azulejos da Rainha Ketevan na igreja da Graça em Lisboa, participaram na conferência internacional no Museu Nacional Georgiano The heritage of Queen Ketevan.

 

O painel de azulejos: uma descrição

O painel azulejar representa o martírio da Rainha Ketevan, tal como vem na legenda superior – AV. D. GATIVANDA, Rª DO GORGISTÃO, IRMAN, E F.ª ESP.al DA ORDEM DE S. AGOSTINHO (A venerável D. Ketevan, Rainha do Gorgistão, Irmã e Filha Espiritual da Ordem de Santo Agostinho). E, na parte inferior, tem a legenda relativa ao martírio – Padeceu martírio em Xiraz da Pérsia a 22 de Setembro de 1624.

A Rainha está representada grosso modo de acordo com as descrições contemporâneas dos missionários agostinhos portugueses.

Era esta piedosa senhora, de pequena estatura, parecia à vista de idade de quarenta anos; andava com um bordão na mão e vestida toda de vestidos negros, como viúva, cabeça e pescoço cobertos de véus algum tanto pretos. O rosto era de estremada formosura e gravidade digna por certo não só de um reino, mas de um soberano império) e sobremodo alvo, e mui agradável que parece causava particular alegria nos que a viam; tinha os olhos pretos, grandes e fermosos, e bem mostrava o exterior ser imagem do que na alma passava, porque nos servos de Deus e em suas servas ainda no rosto aparece a graça divina que lhes possui as almas (1).

O martírio da Rainha está representado de acordo com o relato textual testemunhado por Frei Ambrósio dos Anjos.

O painel é composto de três cenas.

Na primeira cena à esquerda, está representada Ketevan ajoelhada, com as suas aias, que seguram a coroa e o ceptro, aos pés de Frei Ambrósio dos Anjos e legenda – V. Pe. Fr. Ambrozio dos Anjos n.al de Lª, preparando-se para morrer. Os religiosos agostinhos tinham ajudado e consolado a rainha Ketevan, confessando-a e fazendo tudo o que estava ao seu alcance para o bem da sua alma (1). À porta encontram-se dois guerreiros que a esperam.

A cena central representa o suplício. A mártir está deitada de costas sobre um estrado, com os seios a serem arrancados por tenazes, com uma legenda - Adjuva me Deus in tortura mamiliarum mearum (Ajudai-me Senhor na tortura dos meus seios); um anjo espera-a com a coroa de mártir suspensa. Homens a cavalo e a pé rodeiam a cena.

A cena da direita representa a entrega, em 1628, das relíquias da Rainha Ketevan ao seu filho Teimuraz I, Rei de Kakheti, pelo Pe. Ambrósio dos Anjos. Na urna está escrito Ossos da Rª Mártir.

Cada cena é separada por paisagens campestres, segundo o estilo da composição azulejar no século XVIII.

 

A cristianização da Geórgia

O Cáucaso é uma região de cristianização muito antiga, remontando ao século IV, tradicionalmente devida a Santa Nino. O reino de Khaketi tornou-se independente em meados do século XV, após a desintegração do reino georgiano.

Em 1453, deu-se o corte da Geórgia com a cristandade ocidental, pela queda de Constantinopla, vigorando a partir daí o Patriarcado Ortodoxo.

Em Khakheti, ao reinado de David I, casado com a Rainha Ketevan, sucedeu-se, após algumas eventualidades, o reinado de Teimuraz em 1605. As hostilidades constantes com o reino persa de Abbas I culminaram em 1616, com a invasão muçulmana, sendo Kakhetia submetida a uma devastação completa.

 

A missão agostinha na Geórgia

O primeiro contacto da Geórgia com os religiosos agostinhos fez-se na cidade de Xiraz, na Pérsia. Com efeito, foi nessa cidade que Frei Ambrósio dos Anjos assistiu ao martírio da venerável Rainha Ketevan. Em 1628, foi fundado um convento agostinho em Gori, na região oriental. Data de 29 de Junho desse ano, a última carta conhecida de Frei Ambrósio dos Anjos, escrita do Gorgistão e dirigida ao vigário provincial dos Eremitas de Santo Agostinho. Nela relata os vários eventos relativos à missionação, além de descrições da região e seus habitantes.

A missão terminou em 1649, pelas invencíveis dificuldades da jornada e pelos rigores frios daquele clima (1).

 

Santa Ketevan

A heroica Rainha Ketevan é uma das figuras mais veneradas da Geórgia, e de grande valor significativo na história deste país.

A sua vida cruzou-se com a dos missionários portugueses há vários séculos, que assistiram ao seu martírio e contribuíram de forma valiosa para a sua divulgação.

Venerada como Santa na Igreja Ortodoxa Georgiana, o seu culto propagou-se rapidamente. É celebrada liturgicamente no dia 26 de Setembro.

Não chegando a fazer parte da Igreja Católica, segundo os padres agostinhos “É provável que a rainha esteja no céu e se alegre com a glória de Deus. Embora seguisse os costumes gregos, tinha um grande amor pela Santa Igreja Católica e por todos os latinos", esperando a confirmação da Igreja Católica, perante a evidência do seu martírio.

As relíquias da venerável Rainha Ketevan, preservadas originalmente e com grande esforço pelos agostinhos portugueses, são um valioso património histórico da cultura georgiana e da devoção intrinsecamente cristã desta região.

 

(1) Gulbenkian, Roberto, Relação Verdadeira do glorioso martírio da rainha Ketevan da Geórgia, in Separata dos Anais, II Série, vol. 30, Academia Portuguesa da História, 1985, p. 105-186.

 

REFERÊNCIAS

  • RÊGO, António Silva, Documentação para a história das Missões do Padroado Português do Oriente, Lisboa,  Ed. Agência Geral das Colónias, 19471958.
  • GULBENKIAN, Roberto, Relação verdadeira do glorioso martírio da Rainha Ketevan da Geórgia, Anais da Academia Portuguesa de História 30,1985, p.105-186.
  • AZEVEDO, Carlos Moreira, Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834,) edição da Colecção de Memórias de Fr. Domingos Vieira, OESA, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa. Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), 2011.
  • CHIKHLADZE, Marietta, CARVALHO, Maria do Rosário Salema de, “The Representation of Queen St. Ketevan’s Martyrdom on the 18th Century Azulejos in Graça Monastery (Lisbon) According to Portuguese Missionaries Textual Narratives”, Historical Collections, Georgia Vol. 7, 2019, p. 270-295.

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