
O Altar dos Santos Negros, Lisboa
A Capela dos Santos Pretos Cativos encontra-se na nave lateral da igreja da Graça, à esquerda de quem entra.
É um dos mais notáveis altares de Lisboa, pela presença do conjunto de imagens associadas à antiga Irmandade de Nossa Senhora do Rosário: Santa Efigénia, Santo Elesbão, São Benedito de Palermo e Santo António de Noto, os santos negros.
A Confraria
A Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi instituída nos finais do século XVII, na igreja da Graça, inicialmente apenas composta por escravos. Foi conhecida também por Confraria dos Pretos Cativos.
Os estatutos foram reconhecidos por D. João V em 1714, facilitando a entrada dos libertos.
Nos finais do século XVIII, permitiu-se o ingresso de população mista, alterando o título - Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e Pardos -, sendo a única confraria de Lisboa onde os mulatos conseguiram encontrar um lugar de expressão e de afirmação de identidade (nas restantes estavam subordinados aos negros sem poder exercer funções importantes ou de direcção). Esteve activa até 1831.
A presença de uma grande percentagem de população de origem africana em Portugal, nomeadamente em Lisboa, onde chegavam cativos ou libertos, urgiu a sua integração na sociedade lisboeta.
Em meados do século XVI, habitavam na cidade cerca de 10.000 escravos, além de um grande contingente de libertos. Lisboa era, não só a maior das cidades, mas também a cidade com maior concentração de escravos do Reino. O crescimento populacional de origem africana era decorrente da expansão ultramarina e das relações estabelecidas com os povos da costa ocidental de África.
A maior parte das irmandades e confrarias que tiveram negros entre os seus membros, foram criadas sob a égide do Rosário de Nossa Senhora, particularmente nos conventos dominicanos que promoveram esta devoção.
As confrarias do Rosário tinham um carácter aberto, podendo entrar assim homens, como mulheres, de qualquer estado e condição que sejam, grandes, e pequenos (1), não sendo obrigados a pagar coisa alguma para entrar na confraria de modo que nenhum pobre deixasse de fazê-lo por estes motivos, exigindo apenas a oração do Rosário uma vez por semana. Esta característica atraiu e facilitou de modo particular a população de origem africana, que via na Confraria um lugar de protecção, apoio e integração na sociedade.
A primeira Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa foi instituída em 1551, na igreja de São Domingos, onde paulatinamente ingressavam em número cada vez maior.
No início do século XVIII, a população negra em Lisboa possuía pelo menos nove confrarias exclusivas.
O Altar dos Santos Negros
Em 1711, Frei Pedro Lourenço da Graça, religioso agostinho, trouxe da Índia uma imagem de Nossa Senhora do Rosário, de grande devoção nessas regiões do oriente. Foi doada aos Pretos na erecção da sua Confraria na igreja dos religiosos agostinhos para sempre, com a condição de nunca a tirarem a dita imagem da igreja de Nossa Senhora da Graça de Lisboa, mesmo que se extinga a irmandade ou se mude para qualquer parte mesmo que para outra Igreja da mesma Ordem (2).
O altar dos santos negros é posterior ao terramoto de 1755. A colocação das quatro imagens foi realizada de forma solene, com a presença da família real, nomeadamente D. Maria I, e da população da cidade, segundo refere Frei José Pereira de Santa Ana.
A imagem de Nossa Senhora do Rosário foi substituída em 1914, por outra imagem proveniente da antiga Ermida de Nossa Senhora do Rosário, também chamada da Verónica - por efeito da sua localização na vizinha Rua da Verónica-, sendo a que lá se encontra actualmente.
Os Santos Negros
Santa Efigénia, princesa da Núbia, era filha do rei etíope Egito, de acordo com a Lenda Dourada do cronista italiano Jacques de Voragine, compilada por volta de 1275.
Segundo a tradição, converteu-se ao cristianismo pela pregação do apóstolo São Mateus, evangelizador da Etiópia. Foi salva milagrosamente de um incêndio, provocado por seu tio Hírtaco, que tentou destruir a casa onde vivia.
É representada iconograficamente como carmelita, com hábito castanho, sustentando uma igreja em chamas, alusiva ao milagre que lhe é atribuído.
É celebrada a 21 de Setembro, associada à Festa do Apóstolo São Mateus que, segundo a tradição, esteve na origem da sua conversão.
Santo Elesbão (m. 563), segundo a tradição carmelita era natural da Etiópia, sendo imperador do seu país, descendente do rei Salomão e da Rainha de Sabá. Restabeleceu a fé na região Humyarita (actual Iémen), vencendo Danaan que tinha massacrado os cristãos do seu reino. No final da vida, abdicou do trono em favor do seu filho, retirando-se do mundo para se dedicar à vida monástica.
Inicialmente representado como um rei guerreiro, na igreja da Graça apresenta-se com o hábito carmelita, cruz na mão direita e uma igreja na mão esquerda.
As origens do culto de Santa Efigénia e Santo Elesbão são incertas. O culto foi introduzido em Portugal, nos inícios do século XVIII, por Frei José de Santa Ana (1694 – 1759), carmelita português, natural do Rio de Janeiro. É da sua autoria a obra publicada em Lisboa, em 1735 - Os dous atlantes da Etiópia: Santo Elesbão, imperador XLVII da Abissínia, advogado dos perigos do mar e Santa Ifigénia, princesa da Núbia, advogada dos incêndios dos edifícios, ambos carmelitas -, na qual faz a sua apologia. O culto difundiu-se de modo particular em terras angolanas e no Brasil.
São Benedito (c. 1526-1589) nasceu em Palermo, na Sicília, descendente de escravos oriundos da Etiópia, de acordo com a tradição. Libertado muito jovem, entrou como irmão servente no Convento da Ordem Franciscana em Palermo. Embora analfabeto, adquiriu uma sólida reputação de conselheiro espiritual. Viveu humildemente os últimos anos da sua vida, tendo morrido em Palermo a 4 de abril de 1589. Em 1591 realizaram-se os primeiros passos no processo de canonização, que só ficaria finalizado em 1807.
A expansão do seu culto, logo após a morte, foi muito rápida em Espanha, Portugal e no Novo Mundo então descoberto. A sua devoção foi impulsionada especialmente pelos franciscanos, ganhando independência e grande popularidade, particularmente entre a população de origem africana.
Em Portugal, data de 1609 a primeira irmandade dedicada a São Benedito, no Convento de Santa Joana em Lisboa.
O culto de São Benedito em Portugal e nas regiões de expansão portuguesa, teve variadas formas de devoção – festas, procissões, estrofes populares – eventualmente mais numerosas que noutros países da Europa.
Santo António de Noto nasceu em 1490, na cidade de Barca, na actual Líbia, tendo sido educado na fé do Corão. Trabalhando como remador nas galeras reais, foi vendido como escravo no mercado de Siracusa a um camponês dos arredores de Noto. Convertendo-se ao cristianismo, pediu para ser baptizado, recebendo o nome de António.
Cerca de 1530, foi libertado pelo seu amo, tendo permanecido em Noto. Entrou na Ordem Terceira de São Francisco, no Convento de Santa Maria de Jesus dessa cidade. Morreu em 1550 (c.), com fama de santidade. A grande devoção pelas suas relíquias motivou a sua repetida trasladação.
A introdução do culto a Santo António de Noto em Portugal data do início do século XVII, simultaneamente com a de São Benedito.
- NICOLAU, Dias, Frei, “Livro do Rosário de Nossa Senhora”, in REGINALDO, Lucilene, “Rosários dos Pretos, «São Benedito de Quissama»: Irmandades e Devoções Negras no Mundo Atlântico (Portugal e Angola, Século XVIII)”, Studia Historica. Historia Moderna. Salamanca. Vol. 38, 2016, p. 136.
- AZEVEDO, Carlos Moreira, Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834,) edição da Colecção de Memórias de Fr. Domingos Vieira, OESA, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa. Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), 2011, p. 423.
REFERÊNCIAS
- LAHON, Didier, Esclavage, confréries noires, sainteté noire et pureté de sang au Portugal (XVIe et XVIIIe siècles), Centro de Estudos de História Religiosa, UCP, 2003.
- AZEVEDO, Carlos Moreira, Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834,) edição da Colecção de Memórias de Fr. Domingos Vieira, OESA, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa. Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), 2011.
- REGINALDO, Lucilene, “Rosários dos Pretos, «São Benedito de Quissama»: Irmandades e Devoções Negras no Mundo Atlântico (Portugal e Angola, Século XVIII)”, Studia Historica. Historia Moderna. Salamanca. Vol. 38, 2016.
- FONSECA, Jorge, Religião e Liberdade, os negros nas irmandades e confrarias portuguesas: séculos XV a XIX, V. N. Famalicão, Eds Humus, 2016.
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