
O painel “perdido” do Patriarca Arménio David IV de Vagharshapat
A sala do capítulo do Convento Nossa Senhora da Graça em Lisboa está inteiramente revestida de painéis azulejares com episódios da missionação dos Agostinhos nas diversas partes do mundo então descoberto pelos portugueses.
Num desses painéis tem representada a cerimónia solene de obediência ao Papa do Patriarca arménio David IV de Vagharshapat em 12 de Maio de 1605, na igreja agostinha de Ispaão.
Os Arménios
A Arménia, situada num importante ponto estratégico do Cáucaso, foi uma das primeiras regiões onde se difundiu o cristianismo, a partir, segundo a tradição, da evangelização dos Apóstolos São Judas Tadeu e São Bartolomeu. No início do século IV, deu-se a conversão oficial ao cristianismo, sendo por isso considerada a mais antiga nação cristã do mundo. Os cristãos arménios separaram-se de Roma, constituindo um Patriarcado próprio, a Igreja Apostólica Arménia, sujeito ao Cathólicos – nome dado ao Patriarca Supremo da Igreja.
Devido à sua situação, a Arménia foi constantemente disputada entre os vários impérios vizinhos, nomeadamente o Otomano e a Pérsia Safávida nos séculos XVI e XVII. Situada entre os poderosos domínios muçulmanos, os arménios permaneceram fiéis à fé cristã, mantendo os seus costumes e ritos próprios, sendo a Igreja Arménia a única autoridade nacional reconhecida pelas potências muçulmanas governantes.
A união da Igreja Apostólica Arménia com Roma foi tentada várias vezes ao longo da sua história, nomeadamente durante o período das missões agostinhas do século XVII.
O Império Persa Safávida e os Portugueses
A dinastia persa safávida, de islamismo xiita, iniciada com o Xá Ismail I (1524-1576) e continuada por Tahmasp, atingiu o apogeu com Abbas I (1571-1629).
A guerra otomana-safávida (1578-1590) afectou de modo particular a Arménia, com deslocações forçadas das populações e da sua hierarquia. O avanço turco foi sentido também de forma particular na Europa, envolvendo as principais potências europeias e o próprio papado.
Os contactos entre o império safávida e os portugueses iniciaram-se com D. Sebastião (1554-1578), desejoso de conseguir uma união com os persas contra o poderio otomano. Para isso, em 1572, enviou ao Xá Tahmasp (1513-1576) um emissário – D. Miguel Abreu de Lima -, com uma carta expressando a vontade de aliança contra os turcos. Nesta mesma viagem, seguiu o primeiro grupo de missionários agostinhos, com o objectivo de se fixarem em Ormuz, base de evangelização de persas, arménios e georgianos. Embora não haja certeza deste primeiro contacto, o Xá Mohammad Khodabanda (1578-1588) enviou uma embaixada à Europa em 1579, relativo ao projecto de D. Sebastião, pedindo ajuda perante o avanço otomano.
Durante a união das duas coroas da Península Ibérica (1580-1640), continuaram os esforços de contactos com o império safávida, aproveitando a via aberta pelos portugueses, a partir de Goa e Ormuz.
Os Agostinhos em Ispaão
Em 1582, Frei Simão de Moraes, Prior dos Agostinhos em Ormuz, foi escolhido pelo vice-rei da Índia D. Francisco Mascarenhas como mensageiro do monarca ibérico ao Xá da Pérsia. Enviado a inaugurar a presença missionária nesta região, encontrou-se com Abbas I, que permitiu a entrada das missões.
Em 1602, uma embaixada à Pérsia, enviada pelo vice-rei Aires de Saldanha, foi confiada a três religiosos agostinhos, Frei Jerónimo da Cruz, Frei António de Gouveia e Frei Cristóvão do Espírito Santo, segundo sugestão de D. Frei Aleixo de Meneses, Bispo de Goa. Dirigiram-se à corte do Xá pedindo-lhe autorização para promoverem um culto católico público, a fim de darem início à sua fixação na Pérsia. Em 1603, fundaram o seu primeiro convento, na cidade de Ispaão.
Uma nova missão diplomática foi confiada, em 1604, a Luís Pereira de Lacerda, fidalgo da Casa Real, acompanhada de dois religiosos agostinhos Frei Belchior dos Anjos e Frei Guilherme de Santo Agostinho. Ao grupo diplomático juntou-se Frei Diogo de Santa Ana, que chegado a Ispaão, foi eleito Prior daquele convento.
A missionação dos Agostinhos na Pérsia dedicou-se particularmente a assistir os cristãos daquela região, nomeadamente os arménios, e a tentar a união com Roma da Igreja Arménia.
O convento agostinho em Ispaão permaneceu até 1747, altura em que os religiosos foram forçados a abandoná-lo. Actualmente, é ainda desconhecido o local onde se encontrava.
O êxodo arménio
As campanhas do Xá Abbas I (1603-1612) para controlar o avanço otomano a ocidente, tiveram por efeito o domínio de grandes extensões, nomeadamente a Arménia, país de antiquíssima tradição cristã, até então sujeita ao domínio otomano.
Sob a ameaça da invasão turca, o Xá da Pérsia decidiu fazer guerra de terra queimada, despovoando a região e deslocando as populações. No Inverno de 1604, milhares de arménios – estima-se que mais de 300.000 -, foram obrigados a sair de suas casas e deslocarem-se para Sul, área central da Pérsia. A deportação em pleno inverno desses milhares de pessoas, dos quais muitos morreram na travessia, devido aos rigores do Inverno e à fome, ficou registada como um dos acontecimentos mais pungentes da história da Arménia.
A chegada dramática dos deportados arménios a Ispaão, na primavera de 1605, foi presenciada pelos missionários portugueses agostinhos, recentemente instalados na capital safávida – e coincidente com a embaixada portuguesa de Luís Pereira de Lacerda.
Os Arménios foram acompanhados pelo Patriarca David IV de Vagharshapat e muitos clérigos. A cena foi descrita por Frei António Gouveia na Relaçam em que se tratam as guerras e grandes victorias que alcançou o grãde rey da Persia Xá Abbas do grão turco Mahometto (1611). Segundo as fontes portuguesas, os agostinhos providenciaram o mais que conseguiram, de modo a minorar o sofrimento de toda aquela população.
Os milhares de arménios foram instalados nos subúrbios de Ispaão, então capital safávida, constituindo aquela que seria chamada Nova-Julfa.
O Museu Arménio de Vank Ispahan, em Nova-Julfa, guarda o que restou do espólio dos conventos e casas religiosas cristãs na Pérsia, incluindo peças inequivocamente, segundo alguns autores, pertencentes ao universo chamado “indo-português”.
O retorno de uma parte da hierarquia arménia à união com Roma
Em 12 de Maio de 1605, o Patriarca arménio David IV (1587-1629) de Vagharshapat em acto solene, perante Frei Diogo de Santa Ana, Prior do Convento de Santo Agostinho de ispaão, fez juramento de obediência ao Papa, com seis bispos e mais de cem sacerdotes. A aproximação dos prelados arménios a Roma foi devida a Frei Jerónimo da Cruz (m. 1609), o venerável religioso agostinho que assistiu os arménios nas suas dificuldades quando da sua instalação em Ispaão.
Três meses mais tarde, o mesmo Patriarca David escreveu uma carta ao Papa Paulo V, reafirmando a sua obediência e profissão da fé católica.
Este retorno à união com Roma não teve continuação, pois o patriarca retrocedeu no seu propósito. Foram apontados alguns motivos, entre eles a relutância dos notáveis de Nova-Julfa e de grande parte do clero arménio na união, e a desconfiança provocada pelo acordo firmado entre o imperador Rodolfo II da Alemanha e o sultão otomano Ahmed I em 1606.
O Painel da Sala do Capítulo do Convento da Graça
O Painel azulejar retrata, segundo a legenda, a Obediência ao Papa dada pelo Patriarca arménio David com seis Bispos e cento e seis sacerdotes e suas dioceses, em Ispahan Maio de 1607, na presença de P. Diogo de Santa Ana. Encontrava-se à entrada da antiga Sala do Capítulo do Convento de Nossa Senhora da Graça em Lisboa.
Este painel de azulejos, de grande dimensão, em tons de azul, revestia a parede, prolongando-se no canto lateral.
Representa ao centro o Patriarca David paramentado, com o báculo na mão esquerda, lendo uma inscrição que lhe é apontada por Frei Diogo de Santa Ana, Prior do convento: Romano Pontifice Beati Petri Apostolorum Principis Sucessori obedientiam spondemus, ac juramus (Prometemos e juramos obediência ao Santo Romano Pontífice Sucessor de Pedro, Príncipe dos Apóstolos).
Em segundo plano, estão outros dois bispos, igualmente paramentados, e uma multidão de fiéis, notando-se entre eles um religioso agostinho e um nobre com traje europeu. Do outro lado, está representado também um diácono com cruz ortodoxa (?), seguido de outros três bispos.
No canto superior direito, encontra-se um Anjo com trombeta da qual pende uma legenda: Ite Angeli veloces ad gentem convulsam (Ide, mensageiros velozes a um povo disperso, Is 18, 2).
A cena está representada à entrada de uma igreja – igreja do convento de Ispaão -, enquadrada por grandes pilares.
O painel está encimado por uma legenda: V.P.FREI DIOGO DE S. ANNA N. DO TERMO DE BARGANÇA (SIC) – Venerável Padre Frei Diogo de Santa Ana, natural do termo de Bragança.
Na parte inferior dois anjos seguram um dístico com a descrição da cena e data (12 de Maio de 1607).
Actualmente, o painel está truncado, apenas com parte da moldura inferior e os azulejos da parede lateral.
Ainda sem atribuição de autor, foi realizado na primeira metade do século XVIII, mais de um século depois dos acontecimentos que lhe deram origem. É um precioso e raro testemunho da missionação agostiniana, junto da comunidade arménia, nas atribuladas terras do Médio-Oriente.
Uma fotografia deste painel, da autoria de Roberto Gulbenkian, encontra-se na sua obra L’Ambassade (1972), ainda no local primitivo.
Em 1974, quando a Sala do Capítulo estava sob administração do Exército, foi retirado, perdendo-se desde aí o seu rasto.
Vestígio de um património histórico que é importante valorizar e salvaguardar, com um significado peculiar nas relações entre a Arménia e Portugal, é de grande importância localizar este admirável painel.
REFERÊNCIAS
- SOUTO, António de Azevedo Meirelles, Os azulejos do Convento da Graça em Lisboa, in Separata da Revista Municipal, n.º 120 - 121, Lisboa, 1969.
- GULBENKIAN, Roberto, L’Ambassade en Perse de Luís Pereira de Lacerda et des Pères Portugais de l’Ordre de Saint-Augustin, Belchior dos Anjos et Guilherme de Santo Agostinho, 1604-1605, Lisboa, 1972.
- ALONSO, Carlos, Una relación del P. Sebastián de San Pedro, OSA, sobre los Agustinos y la embajada a Persia de Luis Pereira de Lacerda, Estudio Teológico Agustiniano de Valladolid, 1997.
- AZEVEDO, Carlos, Dicionário da História Religiosa de Portugal (dir.), Lisboa, Círculo de Leitores, imp., 2000.
- AZEVEDO, Carlos Moreira, Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Portugal (1256-1834), edição da Colecção de Memórias de Fr. Domingos Vieira, OESA, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), 2011.
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