Os mártires cartuxos ingleses, Lisboa


As pinturas na igreja de Santa Cruz em Lisboa

O conjunto de pinturas integra oito telas representando os mártires cartuxos ingleses, na sua maioria da Cartuxa de Londres – a Charterhouse of London.

As telas são provenientes possivelmente da Cartuxa de Laveiras, desconhecendo-se a sua autoria.

Após a extinção das ordens religiosas em Portugal, em 1834, todos os bens do Convento da Cartuxa foram disseminados, muitos deles perdendo-se-lhes o rasto. Grande parte das telas ficaram em depósito em diversos locais, muitas com temas não identificados.

As telas da igreja de Santa Cruz aparecem referidas em 1955, no Inventário de Lisboa, de Norberto de Araújo e Durval de Lima, sendo também documentadas em fotografias nesta data.

Em 2002, o Pe. Pinharanda Gomes chamava a atenção para estas telas, particularmente as que representam os mártires ingleses, incluindo possivelmente os três priores cartuxos – Pe. John Houghton, Pe. Augustine Webster e Pe. Robert Lawrence - e o irmão converso William Horn.

Cada pintura representa um monge, alguns com elementos do seu martírio: uma corda ao pescoço, uma corrente de ferro, uma faca cravada no peito. Todos estão representados com o hábito cartusiano. Uma das telas representa um irmão converso, identificável pela barba e pela forma do escapulário.

 

O martírio dos cartuxos ingleses

No início de 1535, Henrique VIII fez-se proclamar chefe da Igreja Católica, obrigando todos os seus súbditos à assinatura do Act of Supremacy, pelo qual juravam reconhecer a autoridade do rei de Inglaterra sobre a Igreja. Por efeito deste édito foram martirizados dezenas de católicos, em todo o país.

Os primeiros mártires foram os três priores cartuxos, Pe. John Houghton da Charterhouse de Londres, Pe. Augustine Webster da Charterhouse de Axholme e Pe. Robert Lawrence da Charterhouse de Baeuvale. Foram executados a 4 de Maio de 1535.

Nos cinco anos seguintes foram presos, julgados e condenados mais quinze cartuxos, com torturas e sofrimentos semelhantes aos primeiros.

A notícia do martírio particularmente cruel sofrido pelos monges divulgou-se em especial fora de Inglaterra – onde, por medo de retaliação, foi muito comedida. A descrição destes acontecimentos foi relatada pelo monge cartuxo Dom Maurice Chauncy (c. 1509-1581), numa crónica escrita na Flandres, onde se tinha refugiado - Historia aliquot martyrum Anglorum maxime octodecim Cartusianorum: sub rege Henrico Octavo. Teve várias edições, seguindo-se outras publicações - incluindo a do Padre jesuíta Jonh Morris. A divulgação destes martírios realizou-se particularmente através de imagens que começaram a circular nos vários mosteiros europeus. Em 1583, encontravam-se representações na igreja do Colégio Inglês em Roma.

Em Portugal, não havia então a Ordem Cartusiana. A primeira cartuxa – Scala Coeli – foi fundada em Évora em 1587, e a segunda – Santa Maria Vallis Misericordiae - perto de Lisboa, em 1598. Pertenciam ambas à circunscrição da Castela e, por esta via, vieram possivelmente as representações do martírio dos cartuxos ingleses. Com efeito, Filipe II acolheu e protegeu numerosos religiosos fugidos de Inglaterra e que procuraram, a partir da Flandres, recuperar a Ordem no seu país.

 

Os mártires

Foram dezoito os mártires cartuxos, que sofreram perseguição sob Henrique VIII.

O Pe. Jonh Houhton, Prior da Charterhouse de Londres, o primeiro a sofrer o martírio, apresentou-se em Abril de 1535, diante do Secretário Real Thomas Cromwell (c. 1485-1540), com o pedido de isenção do édito real ou a atenuação do teor e rigor do juramento a fazer. Foi acompanhado na petição pelos Padres Agostinho Webster, Prior da Cartuxa de Axholme, e Robert Lawrence, Prior da Cartuxa de Beauvale.

Foram aprisionados na Torre de Londres em 13 de abril de 1535 e sujeitos a interrogatórios nos dias seguintes, juntamente com outros cristãos na mesma situação. Os depoimentos constam do verso da cópia do Act of Supremacy:

  • John Houghton says that he cannot take the king, our sovereign, to be supreme head of the Church of England afore the Apostles of Christ's Church.
  • Robert Lawrence says that there is one Catholic Church and one Divine, of which the Bishop of Rome is the head; therefore he cannot believe that the king is supreme head of the Church.
  • Augustine Webster says that he cannot [take] the king, our sovereign lord, to be supreme head of the Church, but him that is by the docto[rs of] the Church taken head of the Church, that is the Bishop of Rome, as Ambrose, Jerome, Augustine [affirm], and is made at the Council of Basil. (1)

 

Foram julgados em 29 de Abril, e condenados a serem afogados, enforcados e esquartejados. A 4 de Maio foram executados, juntamente com Pe. Reynolds da Ordem Brigitina. A ida para o martírio foi presenciada por Sir Thomas More, também ele na Torre de Londres, através das grades da sua prisão. Os corpos foram decapitados, esquartejados e colocados em várias partes da City, como possível factor de dissuasão. Foram estes os primeiros mártires da perseguição promovida pela reforma inglesa.

São John Houghon, foi representado por Zurbarán (1598-1664) com o coração na mão, de acordo com as suas últimas palavras ao ser-lhe retirado o coração ainda vivo: Good Jesu! " he exclaimed, " what will ye do with my heart? (1). Juntamente com John Hougton são habitualmente representados os dois priores que sofreram no mesmo dia o martírio - Roberto Lawrence e Agostinho Webster -, bem como o Pe. Richard Reynolds da Ordem de Santa Brígida.

Em Maio, foram presos os Padres Humphrey Middlemore, William Exmew e Sebastian Newdigate, da Cartuxa de Londres, sendo também julgados e sentenciados da mesma forma. Foram executados em 19 de Junho de 1535, com o mesmo tipo de tortura, sendo igualmente os seus corpos colocados em vários pontos da cidade. O martírio do Pe. Sebastian Newdigate, educado na corte de Henrique VIII e seu antigo favorito, teve repercussão particular nos meios londrinos.

Os Padres Jonh Rochester e James Walworth, também da Charterhouse de Londres, foram indirectamente persuadidos a assinar o Act of Supremacy. Enviados para a Cartuxa de Hull, na altura já sob o domínio real, tendo mantido a sua fidelidade à Igreja e ao Papa, foram acusados de alta traição - como os restantes – sob a acusação de terem participado na célebre Pilgrimage of Grace. Sofreram o martírio a 11 de Maio de 1536.

Em 1537, a comunidade da Cartuxa de Londres estava dividida, parte decidindo assinar o Act of Supremacy. Um pequeno grupo, constituído pelos monges professos John Davy, Thomas Green, Thomas Johnson e Richard Bere, e pelos irmãos conversos William Greenwood, Robert Salt, Walter Pierson, Thomas Scriven, Thomas Reding e William Horn, recusando-se a assinar o Act, foram presos a 29 de Maio desse ano e aprisionados em Newgate. Morreram pouco tempo depois pela fome e sofrimento físico, com excepção de William Horn, que veio a falecer apenas três anos mais tarde, em 4 de Agosto de 1540.

Em 1886, foram beatificados os 18 cartuxos ingleses pelo Papa Leão XIII, com muitos outros mártires da mesma época. Em 25 de Outubro de 1970, foram canonizados, pelo Papa Paulo VI, os três priores cartuxos - John Hougton, Robert Lawrence e Augustine Wpbster John Hougton - e muitos outros, entre os denominados Quarenta mártires de Inglaterra e de Gales.

Celebra-se a sua festa a 4 de Maio.

 

A Charteurhouse de Londres

Nas Ilhas Britânicas existiam doze Charteurhouses antes da reforma. Com Henrique VIII todos os mosteiros foram destruídos ou reutilizados e as comunidades dispersas.

Os edifícios da Cartuxa de Londres, como as restantes instituições católicas, foram transferidos para a posse real, sendo vendidos sucessivamente. Um dos últimos proprietários foi Philip Howard, Conde de Arundel, que transformou a casa, ficando a ser conhecida como Howard House. Nela se instalou o embaixador português Francisco Giraldes em 1573, com a família e um grande séquito, no reinado de Isabel I (1558-1603). Houve notícia de aí se celebrar Missa, servindo como capela a galeria longa e estreita do lado Sul do pequeno claustro. 

A Ordem regressou a Inglaterra em 1873, com a fundação da Charterhouse de São Hugo em Parkminster.

 

  1. HENDRIKS, Don Lawrence, The London Charterhouse: its Monks and its Martyrs. London, Kegan Paul, Trench & Co., 1889, pp. 141, 154.

 

REFERÊNCIAS

  • MORRIS, John, The Troubles of our Catholic Forefathers related by themselves, London, John Morris, 1872.
  • HENDRIKS, Dom Lawrence, The London Charterhouse: its Monks and its Martyrs. London, Kegan Paul, Trench & Co., 1889.
  • POLLEN, John Hungerford, MORRIS, Jonh, Acts of English Martyrs, 1891.
  • GOMES, Jesué Pinharanda, MAYO ESCUDERO, Juan, A Cartuxa de Lisboa: Legado de Contemplação, Salzburgo, Universitat Salzburgo, Institut für Anglistik und Amerikanistik Universitat Salzburg, 2007, (Analecta Cartusiana; 246).
  • OEIRAS. Câmara Municipal, CARRILHO, Pedro, et al. Santa Maria Vallis Misericordiae, A Cartuxa em Oeiras, Oeiras, Câmara Municipal, 2023.

 

Fotos gentilmente cedidas pelo Pe. Edgar Clara, pároco da igreja de Santa Cruz do Castelo (Lisboa)



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