
D. Simoa Godinho e a capela-mor da igreja da Conceição Velha, Lisboa
D. Simoa Godinho
D. Simoa Godinho nasceu na ilha de São Tomé por volta de 1537, filha de comerciante de origem europeia e mãe de origem africana, os primeiros povoadores da ilha, que enriqueceram com a comercialização da cana-de-açúcar e o tráfico de escravos.
Abastada, herdeira de uma grande fortuna, casou com Luís de Almeida, fidalgo da Casa Real. O casal veio para Lisboa entre 1570 e 1578, acompanhado de numerosos escravos, como era corrente então, uma deslocação provavelmente forçada pela instabilidade social que agitava a ilha desde meados do século. Fixou residência numa casa apalaçada nas proximidades da antiga igreja da Misericórdia de Lisboa, às Portas do Mar, a zona de Lisboa mais requintada da época.
D. Simoa e o marido passaram a gerir os seus negócios a partir de Lisboa, e a relacionar-se com os mercadores, clérigos e funcionários que transitavam pela capital. No Reino, continuaram a adquirir bens de raiz, com os rendimentos que auferiam das suas propriedades em São Tomé.
Mandaram edificar uma grandiosa capela, do lado do evangelho da igreja da Misericórdia – para lhe servir de sepultura - actual capela-mor da igreja da Conceição Velha.
Luís de Almeida faleceu cerca de 1580, continuando D. Simoa a gerir os negócios. A casa em Lisboa foi ponto de referência para gente que vinha de São Tomé, aproveitando a hospitalidade da nobre dama são-tomense.
Em 1583, um religioso carmelita referia que duas raparigas resgatadas aos corsários ingleses estavam alojadas en casa de una Señora llamada Doña Simona (…), muger muy rica (1). Também, no começo de 1587, chegou a Lisboa Pero Vaz da Quintã, morador em São Tomé, onde era “rico e afazendado”, que se hospedou à Porta do mar, em casa de D. Simoa. (1)
D. Simoa Godinho - viúva e sem filhos - deixou em testamento os seus avultados bens a um grande número de instituições religiosas, nomeadamente à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Do seu testamento, constava uma quinta em Laveiras, que destinou a um mosteiro de religiosas pobres, notável por ter sido origem da Cartuxa de Laveiras. Determinou a libertação da maior parte dos escravos da sua casa, assegurando o futuro dos que não considerava seguro serem libertos.
Determinou também que o Provedor de Santa Casa de Misericórdia de Lisboa aplicasse dinheiros e juros no resgate de cativos. De acordo com as suas indicações testamentárias, ordenou que os seus escravos charamelas - tocadores de instrumentos musicais de que o casal se tinha servido em vida - ficassem destinados a abrilhantar os ofícios religiosos que se deviam celebrar na sua capela. Os mesmos nunca poderiam ser diminuídos do número conveniente, sendo substituídos, quando alguns falecessem, por outros mandados vir de São Tomé.
Faleceu em 1594, sendo sepultada em túmulo próprio, tal como o seu marido, na Capela do Espírito Santo, que mandara edificar na igreja da Misericórdia de Lisboa. O funeral revestiu-se de grande solenidade. A sua fama perdurou após a sua morte, pela generosidade manifestada nos seus muitos legados e a sua referência na actual igreja da Conceição Velha.
A capela-mor da igreja da Conceição Velha
A capela-mor da igreja da Conceição velha, pela sua grandiosidade, é um singular testemunho do legado de D. Simoa Godinho e seu marido.
A capela foi realizada provavelmente por Jerónimo de Ruão (1530-1601), em estilo moderno - sessenta anos após a edificação da igreja (da Misericórdia) por D. Manuel I. A capela estaria pronta antes da morte de Luís de Almeida, cerca de 1583.
Os fundadores promoveram um faustoso culto na sua capela, servida por seis clérigos e escravos charamelas.
A grandiosidade desta capela chamou a atenção de muitos visitantes, como o viajante alemão Jakob Cuelvis que, em 1599, incluiu na sua memória uma referência à Capela do Espírito Santo “la qual fundó por devocion una hidalga o mujer noble negra, muy rica, natural de la isla de S. Thomas […] que fue llamada Doñna Simoa” (1)
A capela foi posteriormente dedicada ao Santíssimo Sacramento, como foi habitual nesse período. Quanto à orquestra de charamelas fundada por D. Simoa, desconhece-se a data em que deixou de actuar.
O terramoto de 1755 destruiu parcialmente a igreja, sendo a capela de D. Simoa, a única a ser preservada.
Em 1770, o que restava da antiga igreja da Misericórdia foi aproveitado para se edificar uma nova igreja – a igreja da Conceição Velha -, sede dos freires da Ordem de Cristo. A antiga capela do Santíssimo Sacramento foi transformada em capela-mor do novo templo.
A capela é muito semelhante à da capela-mor da igreja de Nossa Senhora da Luz, edificada também por Jerónimo de Ruão. É uma obra notável, em que predominam os mármores rosa e branco. O retábulo-mor tem planta côncava, com tribuna e trono escalonado, possivelmente de uma época posterior à sua instituição. Encontra-se ao centro a imagem de Nossa Senhora da Conceição, do século XVIII, do escultor José de Almeida (1708-1770). Não se encontra identificado o local do túmulo de D. Simoa Godinho e seu marido.
- FONSECA, Jorge, Uma negra são-tomense na Lisboa quinhentista, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: CHAM, 2019, p. 105-110.
REFERÊNCIAS
- RIBEIRO, Mário de Sampaio, A Igreja da Conceição Velha, Lisboa, 1938.
- AMBRÓSIO, P. António, Dona Simoa de São Tomé em Lisboa, o seu testamento e a sua capela, Lisboa, Revista Municipal, 1988.
- CALDEIRA, Arlindo Manuel, Mestiçagem, estratégias de casamento e propriedade feminina no arquipélago de São Tomé e Príncipe nos séculos XVI, XVII e XVIII, Arquipélago. História (2ª. Série), v. XI-XII, Ponta Delgada: Universidade dos Açores, (2007-2008).
- FONSECA, Jorge, Uma negra são-tomense na Lisboa quinhentista, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas: CHAM, 2019.
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