
A Misericórdia de São Tomé, São Tomé e Príncipe
As Misericórdias
A Santa Casa da Misericórdia foi instituída, com a respectiva irmandade, em 1498, em Lisboa, promovida pela Rainha D. Leonor (1458-1525), mulher de D. João II.
Destinava-se à vivência das 14 Obras de Misericórdia, nomeadamente a assistência às viúvas e aos órfãos, aos pobres e desamparados, aos doentes e moribundos, aos presos e degredados…; e a assegurar o enterro cristão, particularmente aos que faleciam nessas distantes terras do ultramar e em perigo de salvação das suas almas.
As Misericórdias incluíam um hospital, serviços de assistência e uma igreja anexa.
A excelente cobertura das Misericórdias no primeiro século de vida da instituição manifesta não só a sua evidente necessidade, como o desejo de assegurar a assistência espiritual a todos os que se encontravam em diversas tribulações.
A expansão da Misericórdia foi muito rápida, sendo desejo da Rainha D. Leonor, de expandi-la por todo o Portugal e, logo de início, nos territórios dependentes da coroa portuguesa. Entre 1499 e 1525, estavam fundadas 61 Misericórdias, incluindo vilas obscuras e grande número de terras de além-mar. No período seguinte, desde 1525 – ano da morte de D. Leonor - até 1599, comprovou-se a existência de mais 51 fundações.
O povoamento das ilhas de São Tomé e Príncipe
A ilha de São Tomé, descoberta em (c.) 1470, começou a ser povoada em 1485, a partir de João de Paiva que desembarcou com um primeiro grupo de povoadores, fundando a primitiva povoação na parte noroeste da ilha. Entre 1493 e 1499, com a capitania de Álvaro de Caminha, intensificou-se a exploração agrícola, tendo-se transferido a Povoação para uma baía na região Nordeste – depois denominada Baía de Ana Chaves.
O testamento de Álvaro de Caminha em 1499, pouco antes da sua morte, registou numerosas informações sobre a vida dessa primeira geração de habitantes, e por elas se pode avaliar como foi dura a ocupação de São Tomé (1).
A primeira geração de povoadores era fortemente heterogénea. Segundo o relato de piloto anónimo, cerca de 1534, além de portugueses, livres ou degredados, habitam ali muitos comerciantes Castelhanos, Franceses e Genoveses e de qualquer outra nação que aqui queiram vir habitar, se aceitam todos de mui boa vontade (1); e população de origem africana, o grupo mais numeroso, de diferentes regiões do litoral atlântico - cada habitante compra escravos negros (…) e os empregam, aos casais, em cultivar as terras para fazer as plantações e extrair os açúcares - vindos como escravos para trabalhar nos engenhos da actividade açucareira, então incipiente: o principal negócio dos habitantes desta ilha é fabricar açúcar e vendê-los aos navios que vão buscá-lo todos os anos (1).
O casamento entre portugueses e africanas foi prática corrente nos territórios ultramarinos, fomentado pela própria Coroa, de modo a intensificar o povoamento e desenvolvimento dessas regiões. A miscigenação foi uma das características do povoamento da Ilha: (…) às vezes acontece que os ditos mercadores, morrendo-lhes as mulheres brancas, as tomam negras, no que não fazem grande dificuldade, (…) e os que nascem destas tais negras são de cor parda e lhes chamam mulatos (1).
A preocupação pela assistência religiosa dos habitantes foi notória, numa região onde se encontravam isolados, especialmente para a população de origem europeia, que falecia prematuramente, pelo clima inóspito e doenças tropicais para as quais não se conhecia ainda terapia adequada: Aos brancos acometem muitas febres ardentes (…) e poucos são os habitantes que passam de 50 anos, sendo coisa extraordinária ver um homem branco com barba branca. (1)
Há notícia, pelo testamento de Álvaro de Caminha (1499), de um vigário trazido do reino, o qual ficou sendo durante muito tempo o único a assistir a população: João Álvares, vigário, veio comigo; e porque o mais tempo serviu a igreja só, sem outra ajuda (1). E os religiosos provenientes do Reino, frequentemente adoeciam à chegada às Ilhas ou faleciam, como os restantes habitantes de origem europeia.
Na capitania de Álvaro de Caminha, estava já construída a igreja Matriz de Nossa Senhora da Graça – depois Sé de São Tomé.
A Misericórdia de São Tomé
D. Manuel I mandou construir, em 1504, o hospital e a igreja da Misericórdia, poucas décadas após a descoberta da ilha. Estava situado num dos melhores terrenos da Povoação, perto da igreja da Graça e da Torre do Capitão, integrando o núcleo primordial da cidade. D. Manuel I doou os bens necessários para as obras de construção, bem como a compra de camas e tudo o mais necessário ao seu bom funcionamento.
A Santa Casa da Misericórdia de São Tomé atendia esse primeiro núcleo de povoadores, caracterizado pela grande heterogeneidade e vida muito árdua.
A assistência destinava-se a pôr em prática as Catorze Obras de Misericórdia, como em todas as Misericórdias do Reino e dos territórios sob domínio português, segundo o Compromisso original:
Pois ho fundamento desta santa confraria e jrmyndade he comprir as obras de misericordia. He necessaryo saber as ditas obras. Que sam XIIIj. S. sete sprirituaees. Ensynar hos simpres. E dar bõo conselho a quen o pede. Castiguar com caridade os que erram. Consolar os tristes e desconsolados. Perdoar a quem errou. Sofrer as jnjurias com pacientia. Rogar a deos pelos vivos e mortos. Item as corporais sam. S. Remir cativos e presos. Visitar e curar os emfermos. Cobrir os nuus. Dar de comer aos famyntos. Dar de beber aos que am sede. Dar pousada aos perygrinos e pobres. Enterrar os fynados. (2)
A sua actividade abrangia particularmente os pobres e desamparados, sendo sustentada por esmolas dos naturais da ilha, além do patrocínio Real.
No século XVIII, em data incerta, foi também fundada uma Misericórdia na ilha do Príncipe, sendo referida a sua existência em 1757.
D. Simoa Godinho e a Misericórdia de São Tomé
D. Simoa Godinho (c. 1537-1594), nobre dama são-tomense, era descendente da primeira geração de povoadores, fortemente miscigenada, com uma elite de mulatos (…) de grande inteligência e ricos (…) criando suas filhas ao nosso modo, tanto nos costumes como no traje (1).
Era herdeira de uma grande fortuna constituída principalmente por extensas fazendas açucareiras. A sua herança incluía a rica Fazenda do Rio do Ouro, no Norte da ilha, herdada de sua mãe. Dispunha, como era habitual, de uma grande quantidade de escravos, necessários para o trabalho de produção da cana-de-açúcar.
D. Simoa casou com o fidalgo português Luís de Almeida, escudeiro da Casa Real, sobrinho de Baltasar de Almeida, feitor do trato dos escravos resgatados na costa africana com destino a São Tomé. Luís de Almeida, também dedicado à actividade açucareira, era dono da fazenda do Rio do Lagarto e comprou em 1565 o senhorio e capitania da vizinha ilha de Ano Bom.
O casal esteve integrado nos negócios da produção de açúcar, tendo adquirido outras propriedades, entre elas possivelmente a fazenda de São Bento – que consta do testamento de D. Simoa.
D. Simoa Godinho morreu em Lisboa em 1594, viúva e sem filhos. Deixou consignado no seu testamento, entre muitos, um precioso legado à Santa Casa da Misericórdia de São Tomé, destinado à sua sustentação:
As trezentas arrobas de assucar que deyxo de foro á Mizericordia de Sam Thomé, na fazenda de Dona lzabel, vendam-se com as duzentas arrobas que tenho de foro na fazenda de Francisco Freire, e faça-se dellas o que em meu testamento mando que se faça das de Francisco Freire; e da fazenda de minha May se dê cada anno cem mil reis a dita Caza da Santa Mizericordia de Sam Thomé, chama se a fazenda do Rio de Ouro, e todos os annos que receberem estes cem mil reis, me diram cada anno pera sempre hum Officio de nove Liçoens com Vesperas e Missa cantada, pella alma de Meu Pay e May e todos os meus defunto. (3)
Teve também um especial cuidado com as órfãs: Na fazenda de Donna Izabel de Araujo, cuja fazenda pessue agora sobrinho, tenho trezentas arrobas de assucar, deyxo á Santa Mizericordia de Sam Thomé, pera ajuda de se Cazarem algumas Orphans, ou pera o milhor parecer ao Provedor e lrmãos de Sua Meza (3); e com os pobres: Mando que dem á Santa Mizericordia de Sam Thomé cada anno trinta mil reis dos rendimentos da minha fazenda, pera se partirem pellos pobres mais necessitados, conforme ao que parecer ao Provedor e Irmãos daquella Santa Caza. (3)
Actualmente, a Santa Casa da Misericórdia de São Tomé gere um Lar de Idosos a que deu o nome de Dona Simoa Godinho, homenageando desta forma a generosa dama são-tomense, que no seu testamento, não esqueceu a sua origem.
A Misericórdia de São Tomé na actualidade
As Misericórdias são instituições que perduraram e se mantêm na actualidade fieis aos seus princípios fundacionais em inúmeras regiões de todos os continentes, mesmo após os territórios terem ganho a sua independência de Portugal.
A Santa Casa da Misericórdia de São Tomé é a mais antiga Misericórdia fora do continente europeu. Teve e mantém um papel determinante na assistência aos pobres, doentes e idosos. O apoio à população carenciada concretiza-se no fornecimento de refeições, de medicamentos, complementado quando possível por cuidados de saúde. Pertence e conta com apoio da União das Misericórdias Portuguesas, criada em 1976, e destinada a promover as catorze obras de Misericórdia em todas as Santas Casas.
No antigo edifício da Misericórdia de São Tomé instalou-se o Supremo Tribunal de Justiça de São Tomé e Príncipe. A Santa Casa da Misericórdia continuou a sua actividade noutro ponto da cidade, modernizando as suas funções.
O valioso legado histórico da Misericórdia de São Tomé é uma referência na assistência aos carenciados. A sua missão fundacional está viva, referida na União das Misericórdias Portuguesas, nos desafios da sociedade actual pela defesa da actualidade das obras de misericórdia.
- ALBUQUERQUE, Luís de, A Ilha de São Tomé nos Séculos XV e XVI, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 22, 23, 32, 108.
- “Misericórdias, cinco séculos”, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Oceanos, Lisboa, nº35, 1998, p. 26.
- AMBRÓSIO, P. António, Dona Simoa de S. Tomé em Lisboa, o seu testamento e a sua capela, Lisboa, Revista Municipal, 1988, pp. 33-38.
REFERÊNCIAS
- Brásio, António, Monumenta missionaria africana. África Ocidental (1532-1569), Volume 2. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1953.
- ALBUQUERQUE, Luís de, A Ilha de São Tomé nos Séculos XV e XVI, Lisboa, Alfa, 1989.
- AMBRÓSIO, P. António, Dona Simoa de São Tomé em Lisboa, o seu testamento e a sua capela, Lisboa, Revista Municipal, 1988.
- DIAS, Pedro, História da Arte Portuguesa no Mundo (1415-1822). O Espaço do Atlântico, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.
- “Misericórdias, cinco séculos”, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Oceanos, Lisboa, nº35, 1998.
- HENRIQUES, Isabel Castro, São Tomé e príncipe: A invenção de uma sociedade. Lisboa, Vega, 2000.
- NASCIMENTO, Augusto, A Misericórdia na Voragem das Ilhas, Fragmentos da Trajectória das Misericórdias de S. Tomé e Príncipe, [S.i.], [S.n.], (Lousã, tip. Lousanense), 2003.
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